Consideremos as consequências da enorme transformação operada pela tonalidade. O seu domínio completo na música ocidental, constituindo o que se chamou a música “erudita”, reduziu o antigo sistema de modos eclesiásticos a ruínas. Entre todas as modalidades de jogo dadas pelo rodízio de tônicas modais através das notas da escala diatônica, que punha em diferentes posições de realce os intervalos de tons e de semitons que compõem a escala, conferindo a cada um o seu caráter, ou um certo “sabor” particular, o tonalismo elege o modo de Dó (que reinará absoluto pela exclusão dos demais).
Como sabemos, a escala diatônica, modelo da organização sonora na tradição ocidental, é composta de sete notas contendo cinco tons e dois semitons. No antigo sistema modal usado pelo cantochão, a finalis, que funcionava como “cabeça” e ponto de chegada das modalidades, fazendo as demais notas gravitarem à sua volta, podia variar dentro da “escala”, deslocando com isso a posição relativa dos tons e dos semitons, o que dava a cada modo uma dinâmica, ou, se quisermos, uma “semântica” própria.
No modo de Ré, por exemplo, o primeiro dos modos “autênticos”, que se adotou chamar pelo nome grego de dórico, os semitons recaem entre o segundo e terceiro, o sexto e o sétimo graus.
No modo de mi, dito frígio na Idade Média, os semitons estão entre o primeiro e o segundo, o quinto e o sexto graus.
No modo de sol, por sua vez, chamado tradicionalmente mixolídio, os semitons recaem entre o terceiro e o quarto, o sexto e o sétimo graus.
Essas variações na posição dos semitons davam a cada modo uma nuance particular, pois elas destacam diferentemente os sons componentes da escala, traçando o padrão característico das suas virtuais melodias. O modalismo medieval viveu da variação intervalar dentro do campo da escala diatônica, e dos ambientes ou territórios semântico-sonoros resultantes desse rodízios.
Impõe-se perguntar:
Que tipo de escolhas teria levado a fixar o modo de ut (antigo nome da nota Dó), com seus semitons entre o terceiro e o quarto, e o sétimo e o primeiro graus da escala, como a ordem básica da nova música (quando ela era irrelevante e secundário no mundo medieval)?
Que tipo de discriminações, feitas no cotejo secular entre os modos, à medida que eles foram sendo solicitados pela música polifônica e harmônica no correr dos séculos XIII, XIV e XV, levaram a que o modo de ut ganhasse essa primazia completa sobre os demais, a ponto de extingui-los no contexto da música erudita?
Que tipo de característica faria do modo ut o agente fáustico (o propósito fáustico representa o processo pelo qual a sociedade tem que passar para se desenvolver) de uma transformação generalizada da linguagem musical (para retomar aqui o símbolo literário da passagem da estaticidade “feudal” ao imperativo desenvolvimentista sem tréguas)?
A essas perguntas, admite-se no mínimo uma dupla resposta, considerando o aspecto “semântico”, o ethos do modo, e o aspecto sintático-estrutural, a sua perfeita adequação ao sistema baseado no balanço de tensões e repousos.
Quanto ao aspecto semântico, há um dado curioso: o modo de Dó (assim como o de Fá) pode ser considerado mais “brilhante” do que os modos de Sol, Ré, Lá ou Mi (estes mais austeros e, por isso mesmo, preferidos sob a vigência do canto gregoriano). Acontece que nos modos de Dó e Fá a posição dos semitons (nos quais se localiza a função deslizante e “sedutora” das sensíveis, vizinhas ali da tônica e de uma dominante) põe em grande relevo o jogo de polarizações entre a tônica e suas quintas. Ao contrário do fluxo severo dos outros modos, onde as sensíveis não estão colocadas em posições cardinais, mas um pouco “camufladas” nos meandros da escala, facilitando o escoamento uniforme das sílabas cantadas sobre o leito das melodias, esses modos acentuam o pingue-pongue binário entre tônica e dominante. A exposição mais destacada dessas funções daria a esses modos uma espécie de brilhantismo indesejável no quadro da liturgia medieval, indesejável na própria medida em que, segundo Marius Schneider “o canto gregoriano não é e não pretende ser uma arte brilhante”.
Modo de Dó

Modo de Fá

Trata-se justamente de uma questão de ethos: o brilhantismo dos modos de Dó e de Fá reduz a inteireza das relações intervalares a dois polos, acentuando “os luminosos movimentos ascendentes da dominante” e “deixando na sombra o cortejo fiel e devoto das subdominantes”.

A devoção e a fidelidade, a oração concebida como severo louvor, seriam perturbadas por essa emergência excessiva. Por isso mesmo “a riqueza funcional dos modos de Sol, Ré, Lá e Mi”, que “constituem o campo específico do canto gregoriano”, estaria em não oferecer aquelas “luzes vivazes” dadas pela “tendência para as dominantes”, freando-a através “do contrapeso dos movimentos de subdominantes”. O movimento de quinta ascendente (por exemplo: Dó-Sol) é dinâmico, ativo, vibrando como um aríete que quer “subir” a série harmônica, afastando-se de sua fundamental. Nesse sentido, ele é um salto que implica um certo esforço antientrópico, dotado ou investido de um eros heroico, enquanto a sua inversão, a quarta, é um retorno complementar e repousante ao fundamento harmônico. A cadência de quarta descendente, chamada plagal, característica do modalismo medieval, colore o cantochão com o seu caráter austero, não brilhante, não ascensional, não voluntarista.
O vencedor da surda batalha dos modos que se trava dentro da música polifônica é o modo de Dó (também chamado jônico, com semitons entre o terceiro e o quarto, o sétimo e o primeiro graus da escala diatônica).
Vejamos quais são as propriedades estruturais que lhe dão essa primazia:
A tonalidade redimensiona o espaço da escala diatônica segundo uma hierarquia funcional baseada na triangulação entre o primeiro, o quarto e o quinto graus da escala, cuja convergência sobre a tônica configura uma relação “ultrapolarizante” (esses graus se encadeiam “resolvendo” as tensões colocadas pelas dominantes através de um movimento repousante em direção à tônica).
Os encadeamentos harmônicos instauram movimentos reversíveis de transição entre seus eixos: a tônica, que aparece como o centro polarizador do sistema, e as dominantes, isto é, o quinto e o quarto graus, que correspondem respectivamente à quinta superior e sua inversão, a quinta inferior da tônica.
Como o sistema não é simplesmente melódico, mas essencialmente harmônico, monta-se sobre cada nota da escala um acorde formado pela superposição de terças. Observe-se então que os acordes “perfeitos” dos três graus fundamentais – (dó, mi, sol - fá, lá, dó – sol, si, ré) – contêm em conjunto todas as setes notas da escala, permitindo à harmonia articular e dominar toda a série melódica tonal, “subordinando assim todos os sons usados à lógica do encadeamento”.


O modo de Dó é também o único em que as tríades formadas sobre os graus da tônica e das dominantes, são tríades maiores (constituídas de terças cuja medida é de dois tons, diferentemente das tríades menores). Isso contribui também para dar um relevo enfático à polaridade tônica/dominante na música tonal, destacando nitidamente o primeiro, o quarto e o quinto graus dos demais.
Chegamos assim a um outro ponto crucial para o entendimento do pacto que funda a tonalidade, e através do qual se dá maior densidade ao movimento cadencial: é o momento em que se estabiliza o acorde de sétima de dominante, constituído das notas (sol, si, ré) acrescidas de mais uma terça menor, com o Fá (sol, si, ré, fá). Esse acorde contém dentro de si a quinta "falsa" (Si - Fá) e o trítono (Fá - Si) e se torna o grande depositário da tensão tonal, pronta, no entanto a ser resolvida sobre a tônica (com o duplo deslizamento do Si sobre o Dó e do Fá sobre o Mi). Admitido estruturalmente na escala tonal, o trítono está situado estrategicamente, como dupla sensível, no ponto mais adequado à sua resolução, pela vizinhança estreita que mantém com o acorde da tônica, através de semitons.

Carregado de tensão e da sedução (semitonal) que o cerca, o diabolus vence as resistências acumuladas pela tradição modal cristã.
Restam duas observações para fecharmos esta descrição breve das bases do contrato tonal.
Primeira, que a tonalidade guarda um resíduo modal na forma da oposição entre os modos maior e menor (fundado este sobre tríades menores nos primeiros e quartos graus, sem, no entanto alterar as bases da gramática tonal e da lógica do encadeamento, que permanece a mesma). O modo menor introduz uma variação ambiental e colorida na música tonal, que costuma ser associada (numa evocação do ethos) a conotações tristes e sombrias. No entanto, um dos efeitos da desterritorialização dos modos, levada a cabo pelo sistema tonal, é a dispersão das conotações no labirinto da subjetividade, sua des-codificação e consequente perda do perfil ético. A significação permanentemente buscada e inquirida estará agora sempre em questão, sem repousar em nenhuma espécie de categorização cultural. Os traços do modo menor, e o bloco afetivo de suas conotações, estarão, no entanto, em estado latente como material relevante a serviço da construção: o primeiro motivo da Quinta sinfonia de Beethoven, por exemplo, tão densamente dramático na sua concisão, converte-se curiosamente em música pueril se passado para o modo maior.
Em segundo lugar, a escala tonal não é fixa, mas móvel, através das modulações. Em verdade, ela está pendente sob uma verdadeira cascata de quintas, que faz de cada tônica uma candidata forte a dominante, e de cada dominante uma tônica em potencial. A tônica está sempre a ponto de migrar para outro lugar, carregando consigo as demais funções tonais, transpostas e recompostas a partir de um novo tom (que corresponde a uma nova tônica). Esse caráter migratório e consequentemente relativístico da tonalidade está fundado nas oscilações e ambiguidades do ciclo de quintas, comparável a um jogo de dominó, que pode estar sempre se abrindo. Essa abertura às modulações faz, enfim, que a tonalidade se mova não apenas no campo diatônico (como ocorreria com o modalismo gregoriano) mas, no campo cromático, formado dos doze semitons em que o temperamento igualado divide a oitava (sendo que qualquer uma dessas notas pode ser tomada como tônica e ponto de partida da escala tonal, em suas doze transposições possíveis, com direito ao modo maior e menor). O campo cromático inerente ao sistema tonal foi tratado sistematicamente por Bach no Cravo bem temperado, onde cada um dos dois volumes contém 24 prelúdios e fugas, nos doze tons possíveis, em versão maior e menor. Trata-se de uma verdadeira ocupação do espaço total da tonalidade, e uma primeira admissão desta como sendo um sistema que tem por base não somente a escala diatônica, com suas sete notas, mas a escala cromática, com a qual a primeira se articula através das modulações e transposições. O duplo encaixe entre essas duas escalas se constitui no verdadeiro campo de atuação do tonalismo. Isso define bem a tensão interna ao sistema, pois, enquanto cada tom teria na sua escala diatônica um centro de equilíbrio e repouso, dado pela tônica, o fundo cromatizante sobre o qual ele se move, o dos doze semitons iguais, é descentrado e labiríntico, aberto à permanente instabilidade. O sistema tonal, desse modo, codifica descodificando, e territorializa desterritorializando.
REFERÊNCIA
WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido. Uma outra história das músicas. 2ª ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, 285 p.