A Hipótese Polifônica - (CANDÉ, 2001)
...A polifonia, tal como a concebemos, é a emissão simultânea e deliberada de várias séries deferentes de sons musicais, cujas relações são nitidamente determinadas pelo uso e pela teoria. Não é um fenômeno fortuito, mas a escolha de uma pluralidade que exige uma organização estrita, pois introduz relações de simultaneidade (vertical) numa dinâmica da duração (horizontal). A polifonia aparece como uma “heterofonia” dominada, cuja inteligibilidade será garantida por um conjunto de regras imperiosas. Numa heterofonia qualquer, ou as diferentes partes simultâneas são totalmente independentes, ou, ao contrário, são bastante análogas por mimetismo. Na polifonia, essas partes podem ser nitidamente diferenciadas, mas permanecem estreitamente interdependentes na consumação de um projeto polifônico. (p.79)

Algumas velhas civilizações musicais, que utilizaram escalas simplíssimas, o que, de qualquer forma, não é o caso da Grécia, teriam praticado de longa data uma forma primitiva de polifonia. Georges Arnoux (La musique platonicienne) defende uma teoria segundo a qual a escala pentatônica (dó-ré-mi-sol-lá) implica “por natureza” a polifonia, como todas as escalas simples obtidas pelo ciclo das quintas. Segundo ele, o sentido polifônico ter-se-ia à medida do enriquecimento das escalas, deixando a prioridade à complexidade melódica dos modos. Arpejando nas cinco cordas de um instrumento afinado assim: (p.79)



O músico tinha apenas a impressão de tocar uma melodia instantânea, cuja evocação fugidia era ainda mais satisfatória porque os cinco sons, formando seu material de base, são harmônicos entre si. Também podia deduzir daí um método de embelezamento, tal como o encontramos praticado nas músicas “primitivas”. (p.79)

Certamente, a polifonia erudita é uma singularidade de nossa civilização; mas nossa cultura musical está tão fortemente impregnada dela, que é a monodia que nos parece excepcional; concebemos dificilmente que esta possa ser rica e complexa, considerando como polifonia as eventuais simultaneidades que constituem enriquecimentos, colorações de um pensamento homofônico. As partitas para violino solo de Bach atestam muito mais um pensamento polifônico do que o gamelão javanês ou o sitar indiano, que introduzem uma execução heterofônica num pensamento homofônico, assim como provavelmente fizeram os músicos gregos. A heterofonia, nessas condições, não tem “sentido” polifônico. (p.80)

Em resumo:
Na música erudita (salvo na Europa dos dez últimos séculos), o pensamento musical é homofônico: a heterofonia é fortuita, inconsciente e aleatória (inconsciente, ela revela um instinto polifônico).

Na música dita “primitiva” e no folclore, desde sempre uma polifonia primitiva consciente pôde ser adaptada a um pensamento homofônico.

Na música erudita ocidental, o pensamento é polifônico pelo menos há dez séculos.

A hipótese de que os antigos teriam praticado uma polifonia consciente na música erudita é bastante frágil. O fato de as cordas da lira poderem vibrar juntas não requer grande intuição. E se o aulo é duplo não é para se adaptar à execução polifônica, mas para facilitar os ornamentos e, sem dúvida, as mudanças de modos, tons ou timbres, talvez ainda para fazer ouvir a tônica ou a mese durante a improvisação. Quanto às alusões de Platão à “polifonia”, elas se referem a uma afinação do instrumento que permite passar de uma “harmonia” a outra, do mesmo modo que a “panarmonia” permite passar de um tom a outro numa mesma harmonia. (p.80)

Cumpre acrescentar que, se os gregos tivessem conhecido a polifonia, encontraríamos um testemunho disso em sua teoria e em sua notação; ora, estas são inadaptadas à polifonia e convêm perfeitamente à recitação lírica e aos refinamentos da monodia vocal ou instrumental. (p.80)

REFERÊNCIA
CANDÉ, Roland de. História universal da música. Tradução: Eduardo Brandão. 2ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2001. Vol 1 - 640 p., Vol 2 - 512 p.

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